O meu copo ficou vazio

O meu copo ficou vazio

Por: Professor Paulo Guinote 

Professor do 2º Ciclo do ensino Básico (grupo 200). Doutorado em História da Educação

 

O debate sobre a Educação em Portugal atravessou diversas fases nas últimas duas décadas, tendo chegado em alguns momentos a ser brutalmente conflitual e tóxico. Mas, nos últimos anos, foi-se esvaziando, ficando cada vez mais domesticado, desaparecendo quase por completo qualquer debate de ideias ou discussão de alternativas ao que vamos tendo como modelo único de políticas educativas.

Talvez por ter desaparecido quase por completo das prioridades do debate político, mesmo quando se tonou necessário falar acerca do ensino presencial e não presencial, a Educação tornou-se uma área da governação em que só de forma epidérmica e isolada surge algum contraditório a um estado de coisas que parece ter vindo para ficar, apesar da enunciação de muitas discordâncias e resistência ainda há não tantos ano assim.

Este estado de adormecimento e apatia não foi atingido por acaso, não aconteceu por estar natural mente inscrito na evolução natural das coisas, muito pelo contrário. É o resultado de uma estratégia que teve sucesso na eliminação, silenciamento ou confinamento das posições críticas, através da sedução ou cooptação de sectores da opinião que antes contestavam muitas das políticas implementadas desde os primeiros anos do século XXI.

Da gestão escolar à gestão do currículo, do modelo de avaliação das aprendizagens dos alunos ao modelo de carreira docente e de avaliação do desempenho, não esquecendo a forma de conceber a docência como uma variante de trabalho administrativo ou burocrático, qualquer oposição crítica foi apresentada como “ruído”, adjetivada como resultante de uma visão arcaica da Educação, enquanto se foi cobrindo tudo com uma retórica que usa termos que parecem de uma bondade inquestionável, mesmo se não correspondem às práticas efetivas.

Autonomia, colaboração, flexibilidade, inclusão, inovação foram apenas alguns dos termos que serviram para encher o copo de todos aqueles que surgiram associados ao novo poder na Educação desde 2015, apresentando como se fossem imensas novidades, conceitos e práticas que remontam a momentos diversos da evolução do pensamento educacional e pedagógico dos séculos XIX e XX. E assim se procurou dividir as águas de forma simplista, demagógica e maniqueísta entre “bons” e “maus”, “velhos” e “novos”, “inovadores” e “conservadores”, não hesitando em arregimentar considerações de natureza “moral” contra quem ousou criticar a deriva das políticas educativas para uma espécie de pensamento único que apresenta a “Educação do século XXI” como se tivesse apenas um caminho de sentido único e não como algo necessariamente plural.

E assim se encheu por completo o copo de uns, enquanto se esvaziava por completo o de outros. De um lado ficaram todos aqueles (a que costumo chamar cortesãos, porque tudo isto me faz lembrar o “paradigma” da lógica feudo-vassálica medieval) que aceitaram entrar, do lado das “soluções”, no jogo do funcionamento hierarquizado das escolas, da atomização curricular ao serviço de interesses micro-ideológicos que menorizam os saberes “tradicionais” em favor de sabores do momento, na teia da identificação de áreas prementes de formação que alimenta as clientelas académicas que fizeram essa mesma identificação, no culto do “sucesso” que é nuclear para a aferição das aprendizagens dos alunos, mas que é sujeita a quotas quando se trata de avaliar o desempenho docente.

Pessoalmente, não hesito em colocar-me do lado daqueles que ficaram com o copo vazio, porque vi desertar da “luta” concreta, no tempo certo, muitos do que se opunham à lógica da fragmentação municipal da gestão da Educação ou do modelo unipessoal baseado na obediência hierárquica da gestão escolar. Porque assisti à cristalização de um modelo de avaliação do desempenho docente que se diz norteado pelo reconhecimento do “mérito”, mas que na generalidade das situações premeia a representação do desempenho e a adesão às práticas que as “lideranças” pretendem aplicar para que elas próprias possam ser favoravelmente vistas pelo poder tutelar, central ou local. Porque discordo de um currículo fatiado de acordo com os gostos pessoais deste ou aquele governante ou eminência parda que considera que a Filosofia ou a História são conhecimentos antiquados a substituir por salpicos da espuma dos dias, em forma de filosofias ubuntus ou meditações de fim de semana. Porque acho um erro enorme definir-se como padrão apenas o “essencial” em matéria de aprendizagens, como se a “inclusão” só fosse possível reduzindo o Conhecimento a um esqueleto descarnado de conteúdos desarticulados.

Para o ano de 2022 que começa com campanha eleitoral não guardei quaisquer especiais esperanças que o meu copo receba, sequer, umas pequenas gotas que evitem que fique definitivamente seco, pois sei que, quer os poderes que estão, quer aqueles que poderiam estar, estão de acordo em considerar que o copo está cheio, ou quase, apenas discordando acerca de quem decide com o quê e quem pode beber.

 

Paulo Guinote