EVT – a disciplina que continua a faltar no currículo e se quer fazer cumprir

EVT – a disciplina que continua a faltar no currículo e se quer fazer cumprir

Por: Dr. José Alberto Rodrigues

 

 

Estávamos no último trimestre do ano de 2010 quando, de forma brusca e intempestiva, os professores foram confrontados, quase de supetão, com um documento que estaria para aprovação em Conselho de Ministro e que, numa suposta revisão da estrutura curricular, eliminaria as áreas curriculares não disciplinares de Estudo Acompanhado e Formação Cívica e, ainda, a eliminação do modelo de docência em par pedagógico na disciplina de Educação Visual e Tecnológica (EVT). Estava criada a confusão e lançado o pânico entre os professores, escolas e pais.

 

A APEVT – Associação Nacional de Professores de Educação Visual e Tecnológica lançou, de imediato, um conjunto de iniciativa que, para além de reivindicarem o papel e lugar das artes e tecnologias no currículo, para além das questões profissionais e corporativas, teve também um papel formativo e informativo de relevado na sociedade. Para que se percebesse o que estava em causa, antes da última grande reforma educativa, de Roberto Carneiro, nos idos início dos anos de 1990, não existia a disciplina de EVT mas sim duas: Educação Visual e Trabalhos Manuais, sendo a primeiro lecionada por um professor e a segunda por dois professores. Com Roberto Carneiro e a grande reforma que se implementou, talvez a única verdadeira e sustentada reforma nas últimas décadas, surgiu a nova disciplina de EVT, que passaria a ser ministrada por dois professores (preferencialmente um de cada área e grupo) e num programa integralmente novo. Apesar de se perderem horas de docência, nessa altura eram dados 5 tempos letivos semanais à disciplina de EVT. Essa reforma sustentava e alicerçava esta nova disciplina de EVT, em 1992, depois de uma fase experimental de 2 anos, com um currículo muito bem elaborado, com base da metodologia de trabalho de projeto, de resolução de problemas e com um grande nome das áreas artísticas e tecnológicas: o italiano Bruno Munari. Ainda hoje, já bastante tempo depois de ter morrido, Bruno Munari é uma fonte de inspiração, sabedoria e referência de práticas que desenvolveu nas décadas de 1950 a 1980 e que ainda hoje são atuais, inovadoras e levadas a cabo em práticas artísticas, tecnológicas e de relevo em serviços educativos de museus e práticas de excelência.

 

Mas, perguntamo-nos, o que levou ao fim do par pedagógico da disciplina de EVT? Isso, apenas isso, o que estão a pensar: questões financeiras. Manter as mesmas horas letivas semanais e reduzir o modelo de lecionação da disciplina de 2 para 1 professor, contas rápidas, reduziria praticamente para metade o número de professores, sem que, registem, tenha havido qualquer proposta de revisão ou adaptação do programa da disciplina. O que parecia impensável, como a iniciativa era da responsabilidade do governo, o famoso Decreto-Lei acabaria por ser publicado. Estava, para o ano letivo seguinte, acabado o regime de docência da disciplina de EVT em par pedagógico. Não obstante, a APEVT marcou uma luta global que integrou todos os parceiros e agentes educativos e, de forma assídua, marcou presença em todos os debatas na Comissão de Educação e Desporto da Assembleia da República e agiu em várias áreas e, a recompensa pelo seu trabalho de encontro nacionais e regionais, petição e informação próxima com todos os parceiros, foi a discussão, votação e aprovação, em plenário, de propostas de vários grupos parlamentares que defendiam o regresso ao modelo de par pedagógico na disciplina de EVT o que, de facto, veio a acontecer, em março de 2011, com muitos deputados a aplaudir de pé, em pleno hemiciclo, por ter que ser repristinado o documento com a matriz curricular original que mantinha o regime de docência da disciplina de EVT em par pedagógico. Estava ganha uma batalha e no ano letivo seguinte, havia a certeza de manutenção deste regime de docência em EVT.

 

Mas o país abanava, e muito. A crise financeira anunciada tinha uma clara antevisão na minúscula medida economicista que era acabar com o par pedagógico de EVT. Poucos meses depois da nossa batalha ganha, demite-se o Governo e é pedido apoio monetário e entra a Troika no nosso país. Novas eleições e novo Governo… E nova proposta de mudança na educação, nova matriz curricular e novamente a disciplina de EVT implicada. E que implicações? Talvez óbvias: se o partido que era agora Governo (PSD) tinha votado a favor da manutenção do par pedagógico na disciplina, difícil seria acreditar noutra coisa que não, isso mesmo, acabar com a disciplina. E assim aconteceu, na sua proposta de revisão curricular acabava com a disciplina de EVT e transformava-a em duas: Educação Visual e a de Educação Tecnológica. Volta o tempo letivo semanal a baixar e numa primeira fase, inclusivamente a incluir as TIC nesta grande área artística e tecnológica. Num Governo com maioria absoluta, as dificuldades de ganhar esta batalha eram poucas, mas fez-se um bom caminho, como no ano anterior. Primeiro, a contradição do Ministro Nuno Crato que dizia querer acabar com a dispersão curricular e eliminava uma disciplina e criava duas novas e, depois de uma luta com os mesmos parceiros, foram muitos os contributos recebidos por entidades, partidos, parceiros, pais, associações, que diziam (e escreviam) ser um erro e retrocesso o fim da disciplina de EVT, mas quanto a isso, fizeram “ouvidos de mercador” e nada fizeram. Estava consumada a “morte” da disciplina de EVT e do par pedagógico e criadas as disciplinas de Educação Visual e Educação Tecnológica no 5º e 6º anos de escolaridade, ambas com apenas 2 tempos letivos máximos de carga horária semanal, cada uma. Nenhuma das iniciativas levadas a cabo deu os frutos desejados. Pior ainda, durante algum tempo havia ainda de existir uma nuvem negra sobre a cabeça de muitos professores, especialmente desta área de EVT, com a possibilidade de saírem dos quadros se ao fim de 18 meses se mantivessem com ausência de componente letivo e de um imenso grupo com alguns milhares de professores formados e altamente capacitados que de um momento para o outro teriam de pura e simplesmente ignorar o curso e a disciplina para o qual se formaram. Ainda hoje, com mágoa (porque gostavam, amavam o que faziam), são muitos os que dizem que foram professores de EVT e desde essa altura mudaram, para sempre, de profissão.

 

Passada quase uma década, o que mudou? Muito. Perderam imenso os alunos e o ensino das artes e das tecnologias, da criação, da arte, da técnica, de muitas e muitas práticas de referência que se perderam e do cada vez maior empobrecimento destas áreas do currículo. A disciplina de EVT foi inovadora quando surgiu, uma lufada de ar fresco e uma jovialidade no currículo. Hoje, mantém-se a sua riqueza, intacta, a sua pertinência e relevância. Uma década já se perdeu, quantas mais décadas se vão perder ao ignorar o fim da disciplina de EVT como um dos processos mais desastrosos que aconteceram no currículo? Estarão preparados para tal? Estará a sociedade atenta ao que se está a perder? São imensas as contradições e que nasceu e viveu o currículo de EVT sabe que o ensino baseado em problemas, a pedagogia centrada no indivíduo, muitas teorias que parecem ser a novidade, já o eram no início dos anos de 1990, quando vertidas no currículo da disciplina de EVT. Nos nossos dias, os professores vivem um sufoco entre EV e ET ou só EV ou só ET… ou como articular tudo ou nada… Isso mesmo, pois existe um quase vazio estrutural e curricular, que se reflete na prática, na didática e que, com EVT, tinha um sentido uno, universal, global, integrador.

 

Sucessivamente, vários Governos, em claro desgoverno no campo da educação, quiseram fazer “liftings” curriculares, ao sabor de ideias vagas, a modelos pouco globais e muito pouco sustentados de forma holística e marcadamente identitárias do nosso povo, marcadas por nós e para nós, correndo, ao invés, a outras modas e “rankings” e que marcaram de forma grave a nossa evolução (aquela que é factual, que se vê e vive no dia a dia das escolas). A disciplina de EVT marcava positivamente os alunos, integrava-os, fazia-os sentir-se cidadãos globais e com consciência global de posicionamento perante si, perante o mundo, não fossem os três campos de intervenção da disciplina de EVT o AMBIENTE, a COMUNIDADE e o EQUIPAMENTO.

 

Quantas mais décadas vamos continuar a perder, a permitir o retrocesso, ao não aceitar a importância, o papel e o lugar da disciplina de EVT e do seu currículo, no currículo do 2º ciclo do ensino básico? O regresso da disciplina de EVT ao currículo seria, sem dúvida, e antes que seja extemporâneo, uma reabertura da importância do papel das artes e tecnologias no currículo, na educação e na formação plena e integral dos indivíduos.

 

José Alberto Rodrigues é professor da disciplina de EVT, formado na Escola Superior de Educação do Porto. Posteriormente realizou o mestrado e doutoramento em Multimédia em Educação, pela Universidade de Aveiro. Pertenceu à direção da APEVT e foi seu presidente do conselho nacional por mais de uma década.