Desonestidades

Desonestidades

Por: Professor Paulo Guinote

 

 

Com alguns anos de atraso, encoberto pelas questões da pandemia, o debate na área da Educação foi ocupado nos últimos meses com o tema da “falta de professores”. Tema discutido de forma truncada e enviesada, porque foi atirado para a opinião pública como se fosse algo novo, inesperado, a um tempo apresentado como singular, mas a outro, destacado como um fenómeno transversal a vários países dentro e fora da Europa.

 

Não é preciso andar há muitos anos nisto para perceber a impreparação dos actuais decisores para lidar com algo que se foi anunciando, ano após ano, quando, por exemplo, o ministro em funções já antes estava na equipa ministerial desde o final de 2015. Cruzando-se com o “envelhecimento docente” que antes foi usado mais para tentar justificar uma alegada dificuldade dos professores para lidarem com pretensas inovações e flexibilidades pedagógicas e curriculares e com uma “transição digital” low cost, a “falta de professores” tornou-se um assunto discutido sobre falsos pressupostos.

 

Desde logo, porque a escassez de docentes se verifica principalmente nas situações em que a precarização do vínculo contratual é extrema e as condições de remuneração e contagem de tempo de serviço seguem directrizes draconianas. Nos concursos externos para ingresso nos quadros temos dezenas de milhar de candidatos profissionalizados. Por isso, a “falta de professores” é relativa. Parafraseando-me em outro texto, o que existe é “falta de condições para se ser professor”, porque há vagas que surgem fora de tempo, porque foram encobertas com truques administrativos.

 

E é aqui que entronca a questão da mobilidade dos docentes por motivos de saúde, que o ministro, com o apoio de diversas figuras na área da gestão escolar, decidiu erguer como uma das causas de eventuais distorções na colocação de professores. Nessa investida, em que as acções foram bem mais decisivas do que as palavras escolhidas para efeitos mediáticos, o ministro decidiu, ali por meados de Setembro, recorrer a uma expressão parecida a “eu assumo que todos são honestos, mas…” só que este “mas” tem mais significado do que todo o resto e qualquer garantia que o governante pudesse repetir, após ameaçar a instauração de 7.500 juntas médicas para avaliar todas as baixas médicas apresentadas por motivos de saúde, como se as mesmas já não passassem por esse processo. Mas, ao que parece estas novas juntas médicas suplementares – para além das da C.G.A. ou da Medicina do Trabalho, por exemplo – têm um valor acrescido porque resultam da necessidade de criar “instrumentos de vigilância” para avaliar da razão dos “padrões irregulares” que o ministro e seus auxiliares detectam nas ausências dos docentes.

 

Ao que parece, na 24 de Julho, ninguém ainda conseguiu perceber que as pessoas que não estão em condições para dar aulas necessitam de faltar quando isso lhes é exigido, mas já podem estar nas escolas quando as tarefas são outras ou as tais juntas médicas de valor mais reduzido consideram que já podem ter “alta”. Tantos anos em funções governativas, tanta gente conhecida na gestão escolar e o ministro João costa ainda não percebeu que, curiosamente, os padrões são tudo menos “irregulares”.

 

Mas ele assume a “honestidade” de toda a gente, só sendo pena que em vez de mandar fiscalizar que os seus informadores consideram ser prevaricadores, mande vigiar toda e qualquer baixa médica, assumindo, nos actos, que todos são potencialmente desonestos. O que eu compreendo apenas em pessoas que têm essa noção da sua realidade envolvente.

 

O mesmo recurso à assumpção da generalizada honestidade foi feito a propósito da medida que ele acha que pode reduzir a escassez de professores. Estranhamente, ou não, não é a de permitir completar horários de quem vem substituir docentes com reduções da componente lectiva, nem sequer possibilitar que professores contratados para substituições possam permanecer nas escolas, se é previsível existir nova baixa médica a breve ou médio prazo. Curiosamente, não foi considerar que não se devem atribuir horários em Julho ou Agosto a pessoas que se sabe estarem em situações que não lhes permitirão leccionar um horário com 3, 4, 5 ou mais turmas, para depois apenas os disponibilizar em meados de Setembro.

 

A medida que o ministro encontrou foi a de permitir a contratação e vinculação directa de docentes pel@s diector@s de escolas e agrupamentos, recusando as críticas a tal modelo “localizado” de recrutamento de “proximidade” por ser permeável a “padrões irregulares” ou “distorções” (para recuperar termos usados em outras circunstâncias), pois ele considera – lá estamos de novo – que “todos somos honestos”, só que neste caso nem sequer coloca a possibilidade de criar “instrumentos de vigilância” para prevenir seja o que for.

 

Ou seja, a “honestidade” é enunciada em duas situações, mas com conotações diferentes. Em relação aos professores vem com o “mas” acoplado, mas em relação aos directores surge sem quaisquer reservas. Porque o ministro considera que todos são honestos, claro, mas uns serão mais honestos do que outros. E ele sabe bem quem deve incluir e a quem dar “autonomia”.

 

Como parece óbvio, esses recrutamentos directos não aumentam o número de professores disponíveis, a menos que multiplique miraculosamente o número de docentes dispostos a aceitar horários precários e materialmente pouco compensatórios. A menos que se antecipe uma qualquer forma de retribuição diferida, com uma entrada no quadro. Assim como alguns dirigentes escolares esperam que tal medida, para além de lhes trazer uma maior sensação de poder sobre o seu “pessoal”, à moda do encarregado de uma velha unidade fabril, lhes traga os favores de um governante (ou patrão final) de quem dependem.

 

E é esta forma de quid pro quo generalizado, de desregulação institucionalizada, com base em argumentos truncados ou meramente falsos, que nos faz crescer a percepção de que existe por aqui uma enorme desonestidade intelectual e política. Que se agrava quando se observam as fileiras que defendem estas posições. Porque (quase) tod@s sabemos o que cada um@ andou a fazer em Verões passados. Pelo menos nas últimas duas décadas.

Paulo Guinote