Apologia do aluno e dignificação do professor

Apologia do aluno e dignificação do professor

Por: Drª Isabel Namora

 

 

Começo por dizer que não sei se foi boa ideia convidarem me para falar sobre a educação - tendo eu optado pelo tema genérico do papel da escola no desenvolvimento profissional, social e pessoal do individuo - já que a minha visão é contrária, em muita coisa, ao modus operandi praticado no nosso ensino.

 

Mas adianto, desde já, que considero a profissão de professor uma das mais nobres e importantes na nossa sociedade, desde sempre, já que são eles que impulsionam as mentes em expansão das crianças e que têm a varinha de condão para lhes despertar o interesse pelo mundo que nos rodeia ou para a apatia do desinteresse.

 

É este o principal papel que lhes atribuo, mais até do que lhes ensinar matéria técnica, já que a partir do momento em que um professor consegue despertar as mentes dos alunos, o seu interesse inato vai em busca do conhecimento, necessitando só de orientação e de um diálogo aberto.

 

Sou mãe de dois rapazolas (e chamo-os assim, porque sendo excelentes filhos e meninos, são alunos que hoje podem ser facilmente apelidados de “difíceis”, ou não fossem filhos da sua mãe. Difíceis porque, como adolescentes que são, contestam as afirmações não motivadas para, dessa forma, aferirem a veracidade das mesmas; indagam os professores porque a sua sede de conhecimento vai muitas vezes além do programa leccionado; desmotivam porque nem sempre a matéria corresponde aos seus interesses ou é dada de forma apelativa e direccionada, e tantas vezes desistem por acharem que não são capazes, já que a autoestima lhes é frequentemente posta à prova, face às exigências de serem os melhores que esta época que vivemos nos inculca.

 

Mas quem de nós também não sente tudo isto no nosso mundo de adultos? Quem não desmotiva, não interpela, não contesta, não desiste? Sendo que nós temos o benefício de já possuir a ferramenta da experiência e da maturidade para sermos capazes de gerir as nossas emoções de forma mais equilibrada.

 

Carlos Gonzales, pediatra Espanhol, licenciado pela Universidade Autónoma de Barcelona e autor de vários livros, do quais destaco “Beija-me muito”, ao qual fui beber muitos ensinamentos, ajudou-me a perceber melhor muitas das reacções das crianças ao fazer o paralelismo com a realidade dos adultos e enquadrando-as no estado de maturidade mental e emocional inerente à idade.

 

Alerta-nos ele para a forma diferente como tendemos a ver e a reagir a iguais comportamentos (mais uma vez alerto para a necessidade de este igual ter que ser avaliado tendo em conta a diferença de idades e maturidades) se adoptados por adultos ou crianças.

 

Defende ele que as crianças não são adultas, mas são parecidas. E que precisam de mais respeito do que os adultos, porque são mais frágeis. Precisam de ser mais toleradas porque são inexperientes e ignorantes, e por isso mesmo cometem mais erros se não gerem tão bem as suas emoções. Muitas vezes castigamos ou repreendemos as crianças por coisas que nunca puniríamos num adulto. Se virmos um amigo a deixar metade da comida no prato, não o obrigamos a acabar tudo. Porque o fazemos com as crianças? Se estamos numa reunião, numa conferência ou formação e temos vontade de ir à casa de banho, vamos. Porque não fazemos o mesmo com as crianças que estão às vezes 90 minutos numa aula? Se um colega de trabalho se distrai ao ouvir-nos a explicar determinada coisa, não o repreendemos e voltamos a explicar. Porque não agimos de forma tão natural com as crianças? Porque as apelidamos de egoístas e mimadas se não emprestam os seus brinquedos, se nós não emprestamos os nossos carros, ou outros objectos pessoais? Em suma, porque somo tão exigentes com aqueles que ainda estão em processo de aprendizagem?

 

E é nisto que penso muitas vezes, obrigando-me a reavaliar atitudes impulsivas que tenho com os meus filhos ou com outras crianças com quem, por força da profissão, tenho de lidar.

 

Em modo de entrelinhas digo que sim, que a minha abordagem, consonante com o que sinto, é uma apologia à criança e a todo o seu esplendor, mas jamais a vejam em desfavor dos professores, ou de qualquer outro educador.

 

Por isso, tantas vezes, me revolto quando ouço que as crianças de hoje são as mais mal educadas, insubordinadas e irrequietas que já viram à face da terra, nada se comparando com as dos nosso tempo.

 

É que a memória é curta. Recordam-se das tropelias que fazíamos e de como também nos sentíamos injustiçados quando nos diziam que não nos sabíamos comportar? Dos papelinhos com mensagens atirados aos colegas, das bombinhas de mau cheiro que no Carnaval explodiam nas escolas, das calças dos professores cheias de giz do apagador? … E olhem que agora até somos, na grande maioria, adultos bem sucedidos e respeitadores das normas sociais.

 

Claro que há, como sempre houve em todos os tempos, alunos que devido às suas idiossincrasias apresentam comportamentos inadmissíveis e passiveis de serem enquadrados como infracções disciplinares ou até mesmo como crime, mas esses são excepções e devem ser, também eles avaliados e acompanhados, tendo em vista a sua recuperação, nomeadamente através da Comissão de Menores ou dos Tribunais de Família e Menores, no âmbito de processos de Promoção e Protecção de Jovens e Crianças em risco e através das medidas legalmente previstas e dos meios criados pelo legislador.

 

A esta altura do campeonato devem estar a achar esta minha visão é a de alguém que não está no terreno e que não lida diariamente com a insubordinação e por isso vê o mundo cor-de-rosa, mas esclareço que esta minha perspectiva tem muito a ver com o facto de ser irmã da melhor professora que conheci. Ela, para além de amar o que fazia, dedicando-se por isso de corpo e alma a dar a conhecer Pessoa, Eça e tantos outros, de uma forma que levava os alunos a sentirem-se sentados à mesa da Brasileira com um e em Sintra com o outro (sítios onde levava os seus alunos para eles mais do que aprenderem, sentirem as realidades leccionadas e assim as reterem), tinha aquele sentido especial de saber que cada aluno é um ser individual, apesar de estar integrado num grupo e que os valores morais são tão ou mais importantes que um nível elevado de conhecimentos. E é aqui que está a diferença no manejo da tal varinha de condão de que falava no início.

 

(De forma desautorizada vou também falar de uma professora que conheci já nestas lides do SIPE, que me fez novamente sentir vontade de estudar matemática. Numa das viagens para um congresso do SIPE a Sylvie, professora numa escola aqui do centro, com a sua forma apaixonada e original de falar da matemática, conseguiu prender totalmente a atenção a uma pessoa de humanísticas que não percebia patavina do tema – a mim -, deixando-me a pensar, que sorte tem quem for seu aluno! É que ela não se basta com as fórmulas do programa, alia-as à génese, à sua história, fazendo dessa forma com que as mesmas se transformem em algo palpável e perceptível, enquadradas num tempo e lugar, dando muito mais do que a matéria a que se encontra adstrita e estimulando a vontade de aprender).

 

Mas esta forma que tenho de avaliar a relação aluno/professor também advém da minha experiência profissional como magistrada judicial, função que exerci nomeadamente como juiz de família e menores e na qual somos ensinados (quer pelo que aprendemos na universidade e no centro de estudos judiciários, quer pela experiência diária que nos obriga a uma constante e difícil ponderação de interesses e direitos conflituantes) que a maior parte das vezes as pessoas também são o que as circunstâncias fazem delas. E quando me refiro às circunstâncias quero aludir tanto às do seu passado e presente, como aquelas imediatas que geram o comportamento que se avalia e que tem que se punir ou absolver.

 

E claro que se esse comportamento merecer censura, o mesmo tem que ser penalizado de acordo com a lei e tendo em conta as várias finalidades da pena, mas sempre tendo em vista a melhoria do indivíduo, a sua “regeneração”, de uma forma em que ele entenda o desvalor da acção por si cometida e regresse à actuação ditada pelas normas vigentes no sistema legal, mas sem nunca o ostracizar, ou humilhar, porque a dignidade da pessoa humana é um valor inviolável e um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, sendo a base dos demais direitos fundamentais.

 

São estes os princípios do nosso direito penal, logo devem estar sempre presentes num julgamento justo, princípios estes mais acentuados ainda quando se trata de jovens adultos e mais amplos no que a crianças se refere, como o prevê a Lei Tutelar Educativa.

 

E é este pensamento - que entendo ser o correcto e por isso me esforço por concretizar na minha vida - que plasmo para o ensino, alicerçado principalmente na certeza de que a escola deve transmitir e implementar o ensinamento de que mais importante do que ser bom aluno é ser boa pessoa e bom cidadão!

 

E se é verdade que os professores não podem nem devem substituir-se à família como elemento educativo, não menos verdade é que, também eles, são peça fulcral no desenvolvimento moral das crianças, quer através dos princípios que lhes transmitem, quer através do seu próprio exemplo na sala de aula e em toda a dinâmica escolar.

 

Mas agora chega a altura de vos dizer que após a minha entrada no SIPE fiquei a perceber um pouco mais o porquê de os professores nem sempre conseguirem manejar a varinha de condão a que me referi da forma que pretendem.

 

De facto, a minha experiência como advogada do SIPE mostra-me a luta constante destes profissionais com burocracias completamente desnecessárias e assoberbadoras, com programas tantas vezes sem nexo e desactualizados e com direcções de escola que se julgam portadoras de verdades absolutas e de poder absoluto e inalienável, bem como de governos que os destratam e não respeitam os seus mais elementares direitos. E, na verdade, assim é difícil cumprirem o seu papel, que na grande maioria dos casos é mesmo uma vocação, pela qual ainda resistem e continuam a lutar.

 

Obviamente, estas circunstâncias geram cansaço, desmotivação e revolta, legítimos, que se refletem na sua relação com os outros e lhes retiram disponibilidade mental e física para fazerem aquilo a que são destinados, desperdiçando o seu tempo precioso em tarefas de somenos importância.

 

Como se isto não bastasse, ainda têm de aturar os encarregados de educação que, hoje em dia, disputam de forma aguerrida lugares de honra para os filhos, lançando mão de recursos de notas, porque os seus filhos têm que ser os melhores, os chamam de xenófobos, racistas, homofóbicos, sem sequer saberem o que tal significa, apenas porque chamaram a atenção a algum aluno que estava distraído mas que por acaso tinha uma cor de pele diferente da sua, falava outro idioma, ou queria que o chamassem de João quando o nome do BI é Maria.

 

Sim, são tempos difíceis estes, que exigem um grau de paciência acrescido, mas pensem que também para os filhos desses pais não deve ser fácil ser aluno, já que estão na primeira linha dos disparos e são os alvos mais fracos, pois se falham, se não são melhores que os colegas, têm o vaticínio paterno de fracassados.

 

Face a tudo isto só os posso aconselhar a uma coisa: não tenham medo, lutem por aquilo que acham ser o correcto, mas também, sejam solidários uns com os outros e lembrem-se que a união faz a força e que uma voz não chega tão longe como um coro delas.

 

Imponham as vossas regras e façam-nas ser cumpridas, mas tentem que as mesmas sejam compreendidas.

 

Mudem o que acham que não está certo, não se deixem cair no marasmo que não vos impulsiona para serem aquilo que desejam.

 

Não deixem que programas educativos, quantos deles mal planejados, vos tirem a criatividade.

 

E acima de tudo não se deixem limitar por ordens sem sentido nem fundamento legal, pois as consequências que daí podem advir de certeza que serão menores do que as acusações da vossa consciência por não terem agido de acordo com os seus ditames, além de que poderão sempre contar com a defesa dos vossos direitos pela equipa jurídica do SIPE.

 

E por último, vou citar aquele que para mim é uma inspiração, tanto na área da educação, como nas demais áreas da vida, Agostinho da Silva, filósofo, pedagogo e professor, que com a sua humilde e sabedora forma de ser tanto nos ensina, sem, mais uma vez, deixar de esclarecer que apesar do enfoque que nesta minha explanação dou às crianças / jovens, admiro e agradeço muito toda a dedicação e empenho que os professores dedicam aos alunos, sabe-se lá a que custo.

 

(…) é à criança que temos de considerar o bom selvagem, estragando-a, deformando- a, inutilizando-a o menos que nos seja possível, defendendo o seu tesouro de sonho, jogo e criação, a sua espontaneidade e a sua malícia sem maldade, o seu entendimento sem análise e o seu amar do mundo sem a preocupação das sínteses (…). [Porque a educação é tudo] e não poderá ser mais do que o fornecer a cada um tudo o que solicite para que a sua pessoa se possa desenvolver e afirmar … (Educação de Portugal. Textos Pedagógicos II, pp. 91-94).

 

No texto que foi publicado como a sua última conversa, Agostinho da Silva insistia: “Alfabetizar hoje uma pessoa não é apenas mostrar-lhe como se escreve isto ou aquilo. Curiosamente, foi uma coisa que só descobri em mim há pouco tempo. Estava a ler um artigo sobre a Lua e o autor explicava porque é que há Lua Nova. Eu nunca tinha pensado naquilo. Eu era analfabeto em Lua Nova. Por isso, agora, não é preciso alfabetizar as pessoas. Agora era apenas preciso vir um homem e dizer assim: essa coisa do satélite português que foi para o ar, como é que trabalha? Então eu explico-lhe como é que é, e ele fica alfabetizado para o importante, que no fundo é perceber o mundo actual e o mundo em que vivemos. Escrever, só se escreve algum tempo depois de ter acontecido na história. É que, mais que estarmos sempre a aprender, «temos, sobretudo, de aprender duas coisas: aprender o extraordinário que é o mundo e aprender a ser bastante largo por dentro, para o mundo todo poder entrar». E a educação é o meio e a chave.

 

Em conclusão, sou apologista de uma educação:

- focada na individualidade dos alunos e focada nas competências e handicaps de cada um, pois entendo que só assim se consegue dar iguais oportunidades a todos;

 

- adaptar os programas às realidades diversas de cada escola, atendendo às características da região e da população;

 

- em que se dê enfoque aos princípios morais e sociais, comuns a todas as etnias, culturas e religiões, nomeadamente na interajuda, solidariedade, concorrência leal;

 

- em que o professor tenha autonomia e meios concretos para implementar tudo isto;

 

- em que o professor seja valorizado e tido como um dos pilares fundamentais da sociedade.

 

 

Isabel Namora